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Áreas para pesquisa química do leite no Brasil

  • Alan Frederick Wolfschoon Pombo
  • 29 de mai. de 1981
  • 7 min de leitura

Atualizado: 27 de fev.

Quando se pensa na alimentação do ser humano – sobretudo nas primeiras semanas de vida – entende-se o papel decisivo e importante que tem o leite. Do leite recebe o recém-nascido imunidade, energia e os elementos necessários para o seu desenvolvimento. Apesar do leite de diferentes mamíferos conter praticamente os mesmos componentes, a substituição de um leite por outro não é uma tarefa fácil, já que estes componentes se encontram em diferentes concentrações, dependendo da espécie. A composição química do leite de uma determinada espécie tem sido condicionada ou adaptada às necessidades do pequeno lactante pela própria evolução. Daí que, ao tentar substituir-se um leite pelo outro, resultam em muitos casos complicações gastrointestinais, dermatológicas, hematológicas, respiratórias, etc. Na Tabela 1 pode-se comparar o teor de alguns elementos do leite humano e bovino.

 

Tab. 1.         Composição aproximada do leite humano e bovino**

Elemento

Humano (%)

Bovino (%)

Nitrogênio proteico (NP)

0,160

0,515

NNP

0,040

0,029

Proteína (NP  .  6,38)

1,0

3,3

Caseína

0,4

2,7

Proteína do soro

0,6

0,6

β-Lactoglobulina

?

0,3

α-Lactalbumina

0,25

0,15

Albumina do soro

0,04

0,03

Lactoferrina

0,016

0,03

Lactose

7,0

4,9

Gordura

4,0

3,8

Cinzas

0,2

0,7

Ca

0,032

0,130

P

0,015

0,090

Kilo Joule/L

2900

2700

** Dados expressados em gramas/100ml.

 

Já nesta área pode-se apreciar o amplo campo de trabalho para a pesquisa: adaptar ou “humanizar” leites para a alimentação de crianças não é simplesmente formular; requer um profundo estudo sobre composição em aminoácidos, tamanho de glóbulos de gordura, proporções adequadas de vitaminas, minerais, balanço de energia, etc... enfim, um trabalho realmente complexo.

Sob o nosso ponto de vista, o serviço que a química pode realizar é enorme e abrange muitas áreas: desde a colaboração no controle genético dos animais, passando pela alimentação do gado, fisiologia da lactação, produção do leite, etc. até o recebimento, controle e processamento do mesmo, controle dos subprodutos, das mudanças durante o armazenamento e mesmo a proteção do consumidor.

Algumas das áreas de trabalho da pesquisa química-tecnológica do leite, que consideramos prioritárias no Brasil, são brevemente discutidas, a seguir. Lembra-se aqui o trabalho publicado em 1976 nesta Revista (31, n. 183) por Vargas, cujo conteúdo continua atual.

No referente à alimentação do gado, o trabalho conjunto que pode ser realizado é muito grande. Alimentação e produção do leite estão estreitamente relacionados e, no caso da exploração leiteira, tal relacionamento tem significativa importância econômica. O importante, por um lado, é verificar se o gado está sendo alimentado adequadamente, evitando-se assim perdas desnecessárias. Para a síntese dos componentes do leite, o animal precisa de determinados elementos, como aminoácidos, propionato (para proteína), glicose (para lactose), acetato, biturato (para gordura). Estes elementos são fornecidos com a ração, seja em forma direta ou indireta (por ex. Fibra → Celulose → Acetato → Gordura). O controle da composição de rações e misturas de diferentes formas de fornecimento de nitrogênio e energia são tarefas da química.

Um dos pontos-chaves para a produção do leite é o balanço apropriado entre a quantidade de nitrogênio e de energia fornecida pela ração. Uma nova possibilidade para controlar este balanço parece ser dada pela determinação do teor de ureia na fração de nitrogênio não proteico (NNP) da proteína do leite. Pesquisas têm indicado uma alta correlação entre os teores de ureia do leite e do sangue, porém sua aplicação não foi exaustivamente explorada.

O aumento ou queda da quantidade de ureia do leite e o correspondente aumento ou que3da de nitrogênio na ração é explicável através do próprio metabolismo do ruminante. Um fornecimento excessivo de nitrogênio, ao lado de fornecimento insuficiente de energia, ocasiona maior produção de amoníaco no rúmen. Os microrganismos “processam” o amoníaco em função da quantidade de energia recebida, convertendo-o em proteína microbiana. Porém, se o amoníaco no rúmen é excessivo, as bactérias na pansa, devido à falta de energia, não o transformam em proteína; consequentemente, o excesso de amoníaco é transportado até o fígado, para ser eliminado sob a forma de ureia. O sangue... ureia não somente até os rins, mas também até as células lácteas, na glândula mamária onde, graças à permeabilidade das membranas celulares, acontece sua “entrada” no leite. O campo de trabalho analítico é amplo: desde o desenvolvimento de um método para determinar ureia, que seja exato, rápido e pouco oneroso, até sua aplicação prática no controle do leite.

Como ponto seguinte consideramos as transformações na composição do leite nos casos de problemas de secreção (mastite), que acarretam queda na produção do leite. Os problemas da secreção no leite estão relacionados com uma elevada contagem de células somáticas (sobretudo leucócitos), e também com mudanças químicas, que são as que discutiremos.

Entre as mudanças características do leite anormal encontram-se: elevação da atividade da catalase, do valor pH, da condutibilidade elétrica, dos teores de proteína do soro, de k-Caseína, de sódio de cloreto e de NNP, por um lado; por outro lado, redução dos teores de lactose, α- e β caseína, gordura, extrato seco desengordurado, de vitamina B2 (Riboflavina) e de vitamina C (ácido ascórbico). As proteínas do soro sofrem marcada elevação dos teores de imunoglobulinas e da albumina do soro bovino, em contraposição à diminuição de β-lactoglobulina e α-lactalbumina. Problemas tecnológicos surgem: redução do tempo de coagulação), redução na estabilidade térmica do leite, etc.

Como pode contribuir a química para a resolução destes problemas? Na nossa opinião, desenvolvendo métodos de análise adequados e caracterizando o leite normal, isto é, o leite comprovadamente livre tanto de problemas patológicos como também de fraude (adição de água, alcalinizantes, etc.). Lembra-se aqui que, no caso de leite mamítico, o ponto crioscópico do leite pode ser até normal (ou ligeiramente elevado) – devido a que tanto o leite como o sangue são isotônicos e a diminuição de um ou outro elemento é compensada pelo aumento do outro; consequentemente, esta determinação não representa um parâmetro decisivo para este controle (ver Tabela 2).

 

Tab. 2.         Influência da mastite sobre a condutibilidade elétrica, a concentração de

                     lactose e o ponto crioscópico do leite de vaca.

Estado clínico

do quarto

Condutibilidade

a 37ºC (Sm-1)

Teor de

Lactose (%)

Ponto

Crioscópico (ºC)

Normal

0,563

4,65

– 0,542

Irritação avançada

0,595

4,30

– 0,541

Irritação aguda

0,686

3,75

– 0,543

 Fonte: Segundo Rüegg et al. (1980).     

 

Caracterizar o leite normal (brasileiro). É lógico! Nós não podemos simplesmente dizer que o número de Koestler (relação cloreto/lactose) menor que 2 seja limite para considerar um leite brasileiro como normal (esse deve ser o caso) mas é preciso comprovação, não somente numa ou duas regiões, mas a nível nacional, visto a diversidade de raças bovinas. A literatura internacional de laticínios aponta valores normais para lactose entre 4,7 e 4,9%, rara vez acima de 4,9%. Experiências realizadas no Instituto de Laticínios Cândido Tostes demonstraram que o teor de lactose no leite, pelo menos na Zona da Mata, é igual ou superior a 4,9%. Se problemas de secreção se refletem numa diminuição do teor de lactose, então qual é o teor mínimo de lactose que poderia ser fixado como limite para reconhecer um leite anormal (brasileiro)?

Da mesma forma, teriam que estabelecer valores típicos para cloretos e sódio provavelmente os dois íons que mais poderiam contribuir para caracterizar um leite anormal.

Por outro lado, interessa à Tecnologia conhecer qual é a composição do leite trabalhado na região e, além disso, quais são suas variações sazonais. Na área de queijaria, por exemplo, é elementar dispor de alguns dados sobre os teores de certos elementos do leite, para realizar uma correta padronização e evitar perdas de gordura. Dentre os componentes do leite que precisam ser determinados para cada laticínio, podemos citar: gordura, proteína(caseína), extrato seco total. Estes elementos permitem elaborar tabelas de padronização do leite para cada tipo de queijo. O extrato seco total, por outro lado, por outro lado, é também interessante para a fabricação de produtos lácteos concentrados (leites concentrados, doce de leite, etc.).

A determinação de limites para o valor de pH e o grau de acidez – além do interessante valor tecnológico – podem servir como parâmetros de pagamento, junto à gordura, proteína e extrato seco total, para citar alguns. É necessário estabelecer valores regionais para a depressão do ponto crioscópico, caso ele seja utilizado como método de controle na plataforma.

Que se tem feito na área de limpeza, desinfecção e sanitização? Este é um trabalho difícil, visto que envolve desde o trabalho no estábulo (agentes químicos para a limpeza de ordenhadeiras, etc.) até o da indústria (limpeza de pasteurizadores, tanques de fabricação, etc.).

Sobre o controle do produto terminado: a físico-química ajuda a determinar as mudanças na composição dos produtos durante sua maturação e vida de prateleira, e com isto, a garantir que o produto chegue ao consumidor com todas as suas qualidades organolépticas. Nesta área de trabalho, pouco tem sido feito. A determinação de parâmetros de qualidade depende, por um lado, de que o produto seja submetido às transformações bioquímicas, dentro do seu plano normal de processamento. Assim, faz-se necessário controlar o grau de proteólise, de lipólise, etc. para queijos em fase de maturação! Ou, por exemplo, no caso do leite longa vida, determinar a proteólise, sedimentação, etc.; iogurtes: determinar a quantidade de ácido láctico (L +) produzido por determinadas bactérias; no caso do doce de leite, controlar a cristalização do produto. Os exemplos de áreas de trabalho são numerosos, ainda mais com a introdução de enzimas nos processos tecnológicos. Produtos com lactose hidrolisada (leite magro em pó, doce de leite, leite de consumo, etc.) são de vital importância para pessoas com problemas de intolerância à lactose; pouco tem-se feito nesse campo no Brasil.

As potencialidades de aproveitamento do soro são grandes, sobretudo no referente à obtenção de produtos com proteínas do soro (queijos, sorvetes, bebidas, etc.), o que já foi apontado anteriormente na literatura brasileira. O uso do soro na alimentação de lactantes oferece muitas possibilidades de inovação. A Tabela 3 apresenta a composição em aminoácidos do soro, do leite humano e bovino.

 

Tab. 3.         Teor (Mg/100ml) em aminoácidos do soro, leite humano e bovino*

Aminoácidos

Soro

Leite humano

Leite bovino

Lisina

  71,3

  80,0

260,0

Metionina

  12,5

  21,0

  84,0

Isoleucina

  37,4

  70,0

210,0

Leucina

  68,5

110,0

350,0

Treonina

  40,8

  52,0

160,0

Valina

  33,9

  65,0

240,0

Fenilalanina

  35,3

  50,0

170,0

Histidina

   9,8

  25,0

  89,0

Arginina

  17,9

  40,0

110,0

A. aspártico

  69,3

  86,0

280,0

Serina

  29,5

  80,0

199,0

A. glutâmico

126,8

160,0

185,0

Prolina

  32,0

  70,0

335,0

Glicina

  11,0

  15,0

  66,5

Alanina

  33,1

  30,0

126,0

Tirosina

  14,0

  45,0

170,0

*Segundo Wagner (p. 1943, 1980).

 

Para se realizar todos estes trabalhos é preciso dispor de métodos adequados, ou seja, métodos com exatidão e precisão comprovadas. Tanto quanto sabemos, não existe uma unificação de métodos analíticos específicos para laticínios no Brasil, e muitos dos que são atualmente utilizados (por exemplo, Gerber) precisam ser revisados. Aqui encontra a química do leite, sobretudo a físico-química e química analítica, um dos seus mais interessantes campos de trabalho. Enquanto não existir uma unificação em matéria de análise, consequentemente não existirá uma uniformização na qualidade dos produtos elaborados, o que traz prejuízos tanto para a indústria como para o consumidor.   


[46] POMBO, Alan F. Wolfschoon. Áreas para pesquisa química do leite no Brasil. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, Juiz de Fora, p. 25-289, maio-junho de 1981.



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