A bicoloração do queijo prato na maturação: relato de um incidente
- Alan Frederick Wolfschoon Pombo
- 29 de nov. de 1987
- 10 min de leitura
Atualizado: 27 de fev.
Resumo
Este relatório descreve um defeito de maturação observado no queijo prato: o defeito foi denominado de “mancha branca” devido à sua localização formando zonas brancas na superfície do queijo. O queijo fresco foi moldado de frações de grandes blocos de coalhada pré-prensada na fase que antecede a salga em salmoura. observou-se que no local de ocorrência do problema o pH e o conteúdo de sal foram mais elevados; o conteúdo de nitrogênio solúvel em água foi mais baixo; ambos comparados com a parte normal na superfície do queijo. Observou-se também que a superfície com problema apresentou-se sempre, sem a formação de casca, resultando da porção interior do queijo, similar àquela observada durante o processo de fracionamento em pequenos blocos. Estas regiões apresentaram muitas pequenas aberturas e apresentaram altas temperaturas quando comparadas com as regiões periféricas do queijo. Consequentemente, as regiões desprovidas de casa foram capazes de absorver maiores quantidades de sal, fazendo com que houvesse uma inibição da atividade proteolítica do coalho e das proteases bacterianas. As medidas que foram tomadas para eliminar o problema incluíram: (i) alterações no método de fabricação visando a aceleração da produção de ácidos; (ii) alterações nos métodos de fracionamento dos pequenos blocos e da salga visando o adequado abaixamento do pH do queijo e uma absorção de sal mais uniforme.
Introdução
O relato a seguir refere-se a um problema relativamente incomum observado durante a maturação do queijo prato (tipo lanche). O fenômeno foi observado por vários meses em diversas fabricações, enquanto se estudavam as causas de seu aparecimento e as medidas a serem tomadas para eliminá-lo. Apesar de o processo de fabricação adotado não ser comum às muitas indústrias de queijo do país, é interessante o conhecimento dos principais aspectos da questão, já que o fenômeno da salga e/ou difusão do sal estava estreitamente relacionado com o defeito observado.
Conclusões
1.0 A mancha branca se tornava visível após alguns dias de maturação, persistia por algumas semanas, e na maioria dos casos tendia a desaparecer. Tendo sido eliminadas experimentalmente as hipóteses de má qualidade do sal (presença de sais metálicos), ou da água usada para preparar a salmoura, assim como de eventuais problemas com o leite de fabricação e o fermento lático empregado (outros tipos de queijos feitos com o mesmo leite e com a mesma cultura lática não apresentaram o problema), chegou-se a conclusão de que a mancha branca se devia a não-maturação do queijo naquela região particular, hipótese reforçada pelos seguintes fatos:
1.1 o índice da extensão da maturação era consistentemente mais baixo na região da faixa branca, indicando que ali a proteólise era parcialmente inibida;
1.2 o pH era mais alto naquela região, indicando que o processo fermentativo também era parcialmente inibido;
1.3 o teor residual de carboidratos da faixa branca era mais elevado, o que ratifica a hipótese da diminuição da fermentação local;
1.4 O sabor e textura do queijo naquela região eram anormais, típicos de queijos novos (borrachentos) e com excesso de sal.
1.5 Os índices da profundidade da maturação eram aproximadamente iguais em ambas partes do queijo, o que parecia indicar que compostos nitrogenados de baixo peso molecular eram regularmente formados (ausência de inibição significativa da cultura lática).
1.6 Considerando-se que foi evidenciado que na região da faixa branca o teor de sal era substancialmente mais alto e conhecendo-se o efeito inibidor que o excesso de sal exerce sobre a hidrólise da caseína, concluiu-se que esta era a razão principal do aparecimento do defeito; é interessante observar-se que a medida que o queijo envelhecia o teor de sal tendia a igualar-se, assim como o índice da extensão da maturação, evidenciando o efeito benéfico da difusão do sal na eliminação lenta e gradual do defeito.
1.7 Ao comparar-se nos queijos de maturação média os índices da profundidade e da extensão da maturação, observou-se que o primeiro era aproximadamente o mesmo em todo o queijo, enquanto que o segundo era sensivelmente mais baixo na região da faixa branca. O índice da profundidade da maturação é diretamente proporcional ao teor de compostos nitrogenados que não fazem parte da caseína como proteína ou polipeptídeo, como por exemplo, aminoácidos, compostos aminados, ureia, etc. (fração NPN – nitrogênio não proteico); muito desses compostos são formados por ação enzimática de peptidases, aminases, descarboxilases e outras proteases de origem bacteriana. Em resumo, este índice é uma medida indireta da atividade proteolítica da cultura lática que, no presente estudo, era praticamente a mesma em ambas partes do queijo, sem ser aparentemente muito afetada pela maior concentração de sal na região da faixa branca.
1.8 Por outro lado, o índice da extensão da maturação é diretamente proporcional ao teor de compostos nitrogenados de alto e médio peso molecular, resultantes da degradação do paracaseinato de cálcio no queijo, como polipeptídeos, peptídeos, proteoses e peptonas. Estes compostos são também formados por ação enzimática bacteriana, mas o são sobretudo por ação das enzimas do coalho, como renina e pepsina. Estas enzimas são retidas parcialmente na coalhada quando da coagulação do leite e são muito importantes na fase inicial da maturação. Ao que tudo indica, sua ação estava sendo inibida pelo alto teor de sal presente nas regiões da faixa branca. O efeito inibidor do sal na ação caseolítica das enzimas do coalho é bastante conhecido (FOX; WALLEY, 1971; THOMAS; PEARCE, 1981); sabe-se que enzimas bacterianas que degradam Beta-caseína são mais inibidas que aquelas degradando Alfa-caseína (FOX; WALLEY, 1971). O mesmo efeito inibidor do sal já foi comprovado em relação à fermentação da lactose, que é consideravelmente inibida em queijos com mais de 6% de sal na umidade (THOMAS; PEARCE, 1981), os quais tendem a apresentar pH mais elevado.
1.9 O efeito inibidor do sal na fermentação da lactose manteve o pH na região da faixa branca mais alto do que do restante do queijo; assim, a proteólise por ação do coalho não só foi inibida pelo forte teor de sal, mas também pelo elevado pH, já que enzimas do coalho têm seu pH ideal na região de 4,0 (ALAIS, 1984; VEISSEYRE, 1975). Por outro lado, o pH por volta de 5,40 a 5,60 comumente observado na região da mancha branca, favorecia a atividade de proteases de origem bacteriana (CHOISY et al., 1984) o que parece explicar os índices da Profundidade da Maturação aproximadamente similares observados em ambas partes do queijo.
1.10 Portanto, cooperando para a não-maturação na região apresentando o defeito, se apresentava inicialmente o alto teor de sal que inibia parcialmente a atividade enzimática do coalho; ao mesmo tempo isto inibia também a fermentação da lactose e o abaixamento do pH o que, por sua vez, cooperava ainda mais para diminuir a proteólise inicial ao nível da caseína.
1.11 Era necessário, portanto, conhecer as causas do excessivo teor de sal do queijo e as causas pelos quais seu pH não era suficientemente baixo logo após o processo de salga em salmoura.
2.0 Verificou-se que, logo após a prensagem, os blocos eram imersos em água gelada por duas horas, o que lhes conferia a firmeza necessária a firmeza necessária para o efetivo processo de fracionamento que ocorria logo após. Antes de entrarem na água gelada o pH dos blocos era de aproximadamente 5,40 – 5,50 e permanecia sem grandes modificações até o fracionamento e entrada das frações resultantes na salmoura. Concluiu-se então que o processo de fermentação era precocemente interrompido pelo abaixamento da temperatura (sobretudo nas regiões periféricas) do bloco na água gelada, e das frações na salmoura. Experimentos realizados com blocos deixados por até cinco horas à temperatura ambiente indicarem que não havia um abaixamento significativo do pH (por exemplo, de 5,53 para 5,48). A temperatura do bloco nesse período abaixou-se de 40ºC para 34ºC; explica-se o não abaixamento do pH pelo simples fato de que, durante este tempo, a temperatura do bloco não era a ideal para o desenvolvimento da cultura lática mesofílica empregada; parecia evidenciar que as dimensões do bloco colaboravam para seu lento resfriamento.
2.1 Alguns blocos que logo após a prensagem foram imersos em água gelada, foram cortados ao meio, tendo se verificado que enquanto a temperatura na região periférica era de aproximadamente 10 – 14ºC, no interior do queijo permanecia por volta de 34ºC. Explica-se assim a formação de um gradiente de pH que, com a intervenção do sal, permanecia ainda inalterado por diversas semanas na maturação do queijo fracionado.
2.2 Assim, quando as frações resultantes da divisão do bloco entravam na salmoura, as faces que representavam o interior do mesmo, tinham temperatura bem mais elevada e absorviam sal muito mais rapidamente do que aquelas representando a periferia do bloco original. Estas faces, além de tudo, tinham casca enquanto que as outras além de não tê-la, apresentavam frequentemente problemas de compactação, o que facilitava a absorção inicial de sal. Em queijos cujos grãos são maiores, a distribuição interna do sal se faz mais lentamente (GEURTS et al., 1974) e o equilíbrio no teor de sal demora muito a ser atingido. Isso não deveria ser um problema perceptível numa fabricação normal, mas no caso presente, outros fatores (temperatura e pH) conferiram relevância a este fator.
2.3 Com relação ao problema da má compactação da massa, pensou-se inicialmente que era devido a alguma irregularidade na prensa pneumática; comparando-se com blocos prensados em uma prensa mecânica, concluiu-se que o problema não residia na prensa em sim, mas nas dimensões do bloco.
2.4 Aparentemente este bloco não apresentava uma relação ideal superfície/volume (S/V) que pudesse facilitar a expulsão do soro e a compactação interna da massa. Pode-se comparar, por exemplo, as dimensões do bloco com as do queijo lanche:
Tabela 1 – Comparação das dimensões do bloco com as do queijo lanche
Dimensões | Bloco |
Comprimento (cm) | 19,80 |
Largura (cm) | 23,90 |
Altura (cm) | 22,20 |
Área superficial (cm) | 3.809,00 |
Volume (cm3) | 15.811,00 |
Peso (kg) | 14,00 |
Relação S/V | 0,24 |
2.5 Observa-se que a relação S/V é menor para o bloco do que para o queijo lanche, o que faz com que o bloco tenha um comportamento diferente em relação a manutenção da temperatura interna, expulsão da umidade, compactação da massa, e por consequência, com relação também ao seu pH e capacidade de absorção e difusão (equilíbrio) do sal.
2.6 Eventualmente, blocos eram maturados sem ser fracionados, após serem salgados durante cinco dias. A maturação era efetuada sob embalagem plástica impermeável. O defeito da mancha branca se manifesta claramente em diversos lotes após algumas semanas de maturação sendo que o interior do bloco era de coloração amarelada normal e as bordas de todo o queijo eram visivelmente mais claras. A região periférica esbranquiçada diminuía à medida que a maturação ocorria de dentro para fora e não uniformemente em todo o queijo.
2.7 Um desses blocos, após 2 meses de maturação, foi seccionado ao meio e uma das metades dividida em cinco porções numeradas de 1 (casca) à 5 (miolo) de acordo com sua posição no queijo. A determinação do teor de sal apresentou os seguintes resultados:
Tabela 2 – Resultados da determinação dos teores de sal
Porção | Teor de sal (%) |
1 (casca) | 2,2 |
2 | 1,6 |
3 | 1,6 |
4 | 1,4 |
5 (miolo) | 0,9 |
2.8 Após dois meses de maturação, verificava-se ainda uma diferença de 1,3% de sal entre a periferia e a parte mais central do queijo, o que explica facilmente o fenômeno da bicoloração do bloco: a proteólise era mais intensa onde havia menor teor de sal e mais alta Aw (atividade de água). Enquanto a periferia se apresentava salgada, o centro do queijo era quase insípido. Considerando o formato e as dimensões do bloco, o equilíbrio do teor de sal poderia requerer ainda diversos meses; o equilíbrio dos índices de maturação, contudo, nunca poderia ser atingido, já que, como num queijo maturado externamente por mofos (ex. camembert), havia no queijo duas áreas sob distintas condições de pH e proteólise.
3.0 Medidas adotadas para a eliminação do defeito
Um conjunto de medidas foi adotado para eliminar as causas principais da formação da faixa branca no queijo. Conforme se verificou mais tarde, as medidas tomadas se mostraram eficientes na eliminação do problema. Basicamente, foram introduzidas modificações na técnica de maneira a obter um pH ideal (5,1 a 5,2) no momento da salga, assim como equilibrar a temperatura no queijo e diminuiu a absorção de sal. Diversas recomendações foram feitas:
3.1 emprego de uma pequena porcentagem de fermento lático termofílico acidificante (Lactobacillus helveticus) junto com a cultua lática mesofílica. Com um bom desenvolvimento à temperatura de 40ºC, esta cultura poderia manter a fermentação e abaixar o pH nos blocos enquanto estes estivessem na prensa e no período de espera estabelecido até que apresentassem condições de serem imersos na água gelada. O uso de uma porcentagem reduzida desta cultura termofílica se devia também ao receio de modificações nas características organolépticas do queijo (análises sensoriais – teste do triângulo e escala hedônica – realizadas posteriormente revelaram que não ocorria mudança perceptível de sabor);
3.2 após a prensagem, o pH dos blocos era determinado; se não estivesse na faixa de 5,20 a 5,30, os mesmos eram mantidos à temperatura ambiente até que aquela faixa fosse atingida. Eram, então, conduzidos à água gelada;
3.3 eliminou-se a adição de água ao leite;
3.4 seguiram-se modificações no sistema de corte da coalhada de modo a obter grãos ligeiramente menores e mais regulares;
3.5 após o fracionamento dos blocos, as frações resultantes não eram imediatamente levadas à salmoura; permaneciam por aproximadamente duas horas em uma câmara a 8 – 10ºC e só então eram levadas à salmoura quando a temperatura em todo o queijo fosse reduzida para 16 – 18ºC; eliminou-se, desta maneira, a indesejável formação do gradiente de temperatura, que era um dos principais responsáveis pelo excesso de absorção de sal nas faces sem casca do queijo;
3.6 foi sugerido também o alongamento do tempo de primeira mexedora para 30 minutos (a 32ºC) o que favoreceria a atividade da cultura lática mesofílica e ajudaria no abaixamento do pH durante o processo de fabricação;
3.7 foi feita uma redução do tempo de salga dos queijos na salmoura; o que levaria, efetivamente, a um abaixamento do teor médio de sal dos queijos.
4.0 algumas medidas extras foram também consideradas, no sentido de acelerar o progresso da acidificação ao nível da elaboração no tanque;
4.1 maturação mais prolongada do leite com fermento, antes da adição do coalho;
4.2 semi-cozimento da massa a 39ºC, o que alongaria o tempo de fabricação, proporcionando melhores condições de crescimento e acidificação à cultura lática mesofílica.
Bibliografia
ALAIS, C. Science du lait. 4ª. ed. Paris: Édition Sepaic, 1984. 814p.
CHOISY, C.; DESMAZEAUD, M.; GRIPON, J. C.; LAMBERET, G.; LENOIR, J; TORNEUR, C. Les phenomenes microbiologiques et enzimatiques et la biochime de l’affinage. Capítulo IV em Le Fromage. Paris: Diffusion Lavoisier, 1984. 539p.
FOX, P. F.; WALLEY, B. F. Journal of Dairy Research, v. 38, p. 165, 1971.
GEURTS, T. J.; WALSTRA, P.; MULDER, H. Netherland Milk and Dairy Journal, v. 28, p. 102, 1974.
THOMAS, T D.; PEARCE, K. N. New Zeland Journal of Dairy, v. 16, p. 253, 1981.
VEISSEYRE, R. Technologie du Lait. 3ª.ed. Paris: La Maison Rustique, 1975.
[95] FURTADO, M. M.; WOLFSCHOON-POMBO, A. F.; MORAES, J. M. de. A bicoloração do queijo prato na maturação: relato de um incidente. Rev. Inst. Lat. Cândido Tostes, Juiz de Fora, v. 42, n. 253, p. 3-7, 1987.